sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

A REALIDADE NÃO É RELATIVA






WILLIAM LANE CRAIG — O PROBLEMATrecho retirado do livro Apologética para questões difíceis da vida (páginas 9–13).

Dois livros causaram um enorme espanto na comunidade acadêmica norte americana. O primeiro deles, Cultural Literacy: What Every American Needs to Know, escrito por E. D. Hirsch, documentou o fato de que boa parte dos estudantes universitários norte-americanos não tem o conhecimento básico necessário para compreender sequer a primeira página de um jornal, ou para agir responsavelmente como cidadãos. Por exemplo, em uma recente pesquisa, um quarto dos estudantes pensava que Franklin D. Roosevelt era presidente dos Estados Unidos durante a guerra do Vietnã. Dois terços não sabiam quando havia ocorrido a guerra civil. Um terço pensava que Colombo descobrira o Novo Mundo algum tempo de- pois de 1750. Numa recente pesquisa da Universidade Estadual da Califórnia, em Fullerton, mais da metade dos estudantes não foi capaz de identificar Chaucer ou Dante. Noventa por cento não sabiam quem era Alexander Hamilton, a despeito do fato de sua foto estar em toda nota de dez dólares.

Essas estatísticas seriam piadas divertidas se não fossem tão alarmantes. O que tem acontecido com nossas escolas que têm formado pessoas tão assustadoramente ignorantes? Allan Bloom, que foi um eminente educador na Universidade de Chicago, e autor do segundo livro ao qual me referi acima, argumentou em The Closing ofthe American Mind que por detrás desse mal-estar educacional subjaz a convicção universal dos estudantes de que toda verdade é relativa e que, portanto, a verdade não é digna de ser buscada. Bloom escreve:
Há uma coisa de que um professor pode estar absolutamente certo: quase todos os estudantes que entram na universidade acreditam, ou dizem acreditar, que a verdade é relativa. Se essa crença for questionada, pode-se esperar a seguinte reação dos estudantes: eles não entenderão. Qualquer pessoa que considere que uma proposição não é autoevidente provoca-lhes admiração, é como se fosse admirável colocar em questão o fato de que 2+4=4. Estas são coisas sobre as quais você não pensa (…) O fato de os estudantes verem tal questão como algo de ordem moral é claramente visto no caráter da resposta deles quando desafiados — uma combinação de descrença e de indignação: “Você é um absolutista?”, a única alternativa que eles conhecem, emitida no mesmo tom como… “Você realmente acredita em bruxas?”. Essa pergunta produz indignação, pois alguém que acredita em bruxas pode muito bem ser um caçador de bruxas ou um juiz de Salém. O perigo do absolutismo, que eles foram ensinados a temer, não é o erro, mas a intolerância. O relativismo é necessário para a abertura; e essa é a virtude, a única virtude, que toda educação fundamental, por mais de cinquenta anos, tem se dedicado a inculcar. “Abertura” — e o relativismo que a transforma em única posição possível diante das várias reivindicações de verdade e dos vários estilos de vida e dos vários tipos de seres humanos — é a palavra de ordem que expressa o grande insight de nossos tempos. (…) O estudo da história e da cultura nos ensina que todo o mundo foi insensato no passado; os homens sempre pensaram que estavam certos, e isso os conduziu a guerras, perseguições, escravidão, xenofobia, racismo e machismo. A questão não é corrigir os erros e realmente estar certo; mas, sim, não pensar que você, afinal de contas, está certo.
Allan Bloom, The Closing of the American Mind, New York, Simon & Schuster, 1987, p. 25,26 .

Uma vez que não há nenhuma verdade absoluta, uma vez que tudo é relativo, o propósito da educação não é ensinar a verdade ou conhecer os fatos — pelo contrário, trata-se apenas de adquirir a habilidade necessária para enriquecer, conseguir poder e fama. A verdade se tornou irrelevante.

Ora, é natural que esse tipo de atitude relativista quanto à verdade seja antitética à cosmovisão cristã. Afinal, como cristãos, cremos que toda verdade é verdade de Deus, que Deus nos revelou a verdade, tanto na Palavra como naquele que disse: “Eu sou a Verdade”. O cristão, portanto, jamais pode olhar para a verdade com apatia ou desdém. Pelo contrário, ele preza e valoriza a verdade como reflexo do próprio Deus. Por outro lado, como concluíram erroneamente os estudantes de Bloom, o compromisso com a verdade torna o cristão um intolerante; no entanto, o real conceito de tolerância requer que uma pessoa não concorde com aquilo que ela tolera. O cristão está compro-
metido tanto com a verdade como com a tolerância, porque acredita naquele que não somente disse “Eu sou a verdade”, como também declarou “amai os vossos inimigos”.

Na época em que esses referidos livros foram publicados, eu lecionava no departamento de estudos religiosos em uma faculdade cristã. Então, comecei a pensar: “Quantos cristãos teriam sido influenciados pela atitude que Bloom descreve? Como seria a performance dos meus próprios alunos nos testes de E. D. Hirsch?” Pensava com meus botões: “Como será que eles se sairiam? E por que não fazer um teste desses com eles?” Bom, foi isso que fiz. 

Baseei-me num pequeno teste de conhecimentos gerais a respeito de pessoas, lugares e coisas famosas e o apliquei a duas classes de aproximadamente cinquenta alunos de segundo ano. Verifiquei que, apesar de eles apresentarem um resultado melhor do que a maioria da população de estudantes em geral, havia uma grande parte do grupo que não era capaz de identificar — mesmo com uma frase — alguns nomes e eventos importantes. Por exemplo, 49% não foram capazes de identificar Leon Tolstoi, o autor, talvez, do maior romance do mundo, Guerra e paz. Para minha surpresa, 16% não sabiam quem era Winston Churchill. Um estudante pensava que ele era um dos pais fundadores dos Estados Unidos! Outro estudante o identificou como um grande pregador reavivalista de poucos séculos atrás! 20% não sabiam o que é o Afeganistão, e 22% não foram capazes de identificar a Nicarágua. 20% não sabiam onde está localizado o rio Amazonas. Imaginem! 

Os resultados foram ainda piores quanto a coisas e eventos. Fiquei abismado ao descobrir que 67% não foram capazes de identificar a Batalha de Bulge. Vários a identificaram com um problema que afeta pessoas em dieta.2 20% não sabiam o que era a “teoria da relatividade” (observe que era apenas para identificá-la como “uma teoria de Einstein” — não era necessário explicá-la). 40% não foram capazes de identificar a Ultima Batalha de Custer, que foi classificada como uma batalha na guerra revolucionária ou como uma batalha na guerra civil. Diante de tudo isso, não fiquei surpreso de que 73% não
soubessem a que se refere a expressão “destino manifesto”.

Assim, ficou claro para mim que os estudantes cristãos não eram capazes de estar acima da catástrofe de nosso sistema educacional, tanto nos níveis primários como nos secundários. Esse nível de ignorância apresenta uma verdadeira crise para as faculdades e seminários cristãos.

No entanto, um temor ainda mais terrível começou a me assombrar enquanto contemplava essas estatísticas. E pensei: “Se estudantes cristãos são tão ignorantes a respeito dos fatos gerais concernentes à história e à geografia, então, devem ser muito fortes as chances de que eles, e cristãos em geral, sejam igualmente ou ainda mais ignorantes a respeito dos fatos de nossa própria herança e doutrina cristãs”. E indubitável que a nossa cultura mergulhou fundo no analfabetismo bíblico e teológico. Muitas pessoas não sabem sequer dizer quais são os quatro Evangelhos — numa recente pesquisa uma pessoa os identificou como Mateus, Marcos e Lutero! Numa outra pesquisa, Joana D ’Arc foi identificada por algumas pessoas como a esposa de Noé! Comecei a suspeitar que, provavelmente, a igreja evangélica também esteja enredada em algum nível mais elevado dessa mesma espiral declinante.

Mas, se nós não preservamos a verdade de nossa própria herança e doutrina cristãs, quem irá fazê-lo por nós? Os que não são cristãos? Dificilmente! Se a igreja não dá valor à própria verdade cristã, então, ela se perderá para sempre. 




NORMAN GEISLER — O QUE É A VERDADE?Trecho retirado do livro Enciclopédia de Apologética (Páginas 862–863).

A verdade não é “o que funciona”: evidente a partir da confusão entre causa e efeito. Se algo é verdadeiro, funcionará, pelo menos a longo prazo. Mas só porque algo funciona não significa que seja verdadeiro. Não é assim que a verdade é detectada no tribunal. Os juízes tendem a considerar o expediente como perjúrio. Finalmente, os resultados não resolvem a questão da verdade. Mesmo quando os resultados são obtidos, ainda se pode questionar se a afirmação inicial correspondia aos fatos. Se não, não era verdadeira, não importa quais os resultados.

A verdade não é “o que é coerente”: afirmações vazias são coerentes apesar de serem destituídas de conteúdo verdadeiro. “Todas as esposas são mulheres casadas” é uma afirmação internamente consistente, mas vazia. Não nos diz nada sobre a realidade. A afirmação estaria correta, mesmo que não existissem esposas. Na realidade, ela significa: “Se há uma esposa, ela deve ser casada”. Mas não nos informa que há uma esposa no universo. Um grupo de afirmações falsas também pode ser internamente consistente. Se várias testemunhas conspiram para representar falsamente os fatos, sua história pode ser mais coerente que se elas tentassem contar a verdade honestamente. Mas isso ainda é uma mentira. Na melhor das hipóteses, a coerência é um teste negativo da verdade. Afirmações são erradas caso sejam inconsistentes, mas não são necessariamente verdadeiras se forem consistentes.

A verdade não é “a intenção”: muitas afirmações concordam com a intenção do autor, mesmo quando o autor está errado. “Deslizes” ocorrem, comunicando uma mentira ou ideia enganosa que o comunicador não tinha a intenção de comunicar. Se algo é verdadeiro porque alguém queria que fosse verdadeiro, todas as afirmações sinceras já feitas são verdadeiras — mesmo as que são patentemente absurdas. Pessoas sinceras geralmente estão sinceramente erradas.

A verdade não é “o que é abrangente”: abrangência é um teste da verdade, mas não a definição da verdade. Certamente uma boa teoria explicará todos os dados relevantes. E a cosmovisão verdadeira será abrangente. No entanto, esse é apenas um teste negativo de veracidade. As afirmações dessa visão ainda devem corresponder à realidade. Se uma visão fosse verdadeira só por ser mais enciclopédica, uma afirmação abrangente de erro seria verdadeira e uma apresentação condensada da verdade automaticamente seria errada. Nem todas as apresentações extensas são verdadeiras e nem todas as sucintas são falsas. Pode-se ter uma visão abrangente do que é falso ou uma visão superficial ou incompleta do que é verdadeiro.

A verdade não é “o que é existencialmente relevante”: mesmo se a verdade é de certa forma existencial, nem toda verdade se encaixa na categoria existencial. Há muitos tipos de verdade: física, matemática, histórica e teórica. Mas se a verdade por natureza é encontrada apenas subjetivamente na relevância existencial, nenhum desses tipos poderia ser verdadeiro. O que é verdadeiro será relevante, mas nem tudo que é relevante é verdadeiro. Uma caneta é relevante para um autor ateu. E uma arma é relevante para um assassino. Mas isso não torna a primeira verdadeira nem a segunda boa. Uma verdade sobre a vida será relevante à vida. Mas nem tudo que é relevante para a vida será verdadeiro.

A verdade não é “o que é agradável”: é evidente que más notícias podem ser verdadeiras. Mas se o que é agradável é sempre verdadeiro, não precisaríamos acreditar em nada desagradável. Notas baixas no boletim não fazem um aluno se sentir bem, mas o aluno que se recusa a acreditar nelas sofrerá as conseqüências. Elas são verdadeiras. Sentimentos também são relativos a personalidades individuais. O que é agradável para um pode ser ruim para outro. Se assim fosse, a verdade seria altamente relativa. Mas, como será visto em maiores detalhes a seguir, a verdade não pode ser relativa.
Mesmo se a verdade nos é agradável — pelo menos a longo prazo — isso não significa que o que é agradável é verdadeiro. A natureza da verdade não
depende do resultado da verdade.

A verdade é o que corresponde à maneira em que as coisas realmente são. A verdade é “a realidade nua e crua”. A correspondência se aplica a realidades abstratas assim como factuais. Existem verdades matemáticas. Também há verdades sobre idéias. Em cada caso há uma realidade, e a verdade a expressa precisamente.
Falsidade, então, é oque não corresponde. Não é a realidade nua e crua, e representa mal a maneira que as coisas são. A intenção por trás da afirmação é irrelevante. Se não tem correspondência adequada, é falsa.

Todas as visões de não-correspondência da verdade implicam correspondência, mesmo enquanto tentam negá-la. A afirmação: “A verdade não corresponde à realidade” implica que essa afirmação corresponde à realidade. Assim, a visão de não-correspondência não pode se expressar sem usar uma estrutura de correspondência como referência.
Se as afirmações factuais de uma pessoa não precisam corresponder aos fatos para ser verdadeiras, qualquer afirmação factualmente incorreta é aceitável. Torna-se impossível mentir. Qualquer afirmação é compatível com qualquer situação.
Para saber se algo é verdadeiro ou falso, deve haver uma diferença real entre as coisas e as afirmações sobre as coisas. Mas correspondência é a comparação de palavras com seus referentes. Logo, uma visão de correspondência é necessária para entender afirmações factuais.

A comunicação depende de afirmações informativas. Mas a correspondência a fatos é o que torna as afirmações informativas. Toda comunicação depende, em última análise, de algo que é literal e factualmente verdadeiro. Não podemos sequer usar uma metáfora sem entender que há um significado literal comparado ao sentido figurado não-literal. Então, conclui-se que toda comunicação depende, em última análise, de uma correspondência à verdade.

A teoria intencionista alega que algo é verdade somente se o que é realizado corresponde à intenção da afirmação e a cumpre. Sem correspondência de intenções e fatos realizados não há verdade.




GIOVANNI REALE E DARIO ANTISERI — A SOFISTICA: PROTÁGORAS E GÓRGIASTrecho retirado do livro História da Filosofia I — Filosofia Pagã (Páginas 73–76).

Sofista” é um termo que significa “sábio”, “especialista do saber”. A acepção do termo, que em si mesma é positiva, tornou-se negativa sobretudo pela tomada de posição fortemente polêmica de Platão e Aristóteles. Durante muito tempo os historiadores da filosofia adotaram, além das informações fornecidas por Platão e Aristóteles sobre os sofistas, também as suas avaliações, de modo que, geralmente, o movimento sofista foi desvalorizado e considerado predominantemente como momento de grave decadência do pensamento grego. Somente no século XX foi possível uma revisão sistemática desses juízos e, consequentemente, uma radical reavaliação histórica dos sofistas; e a conclusão a qual se chegou é que os sofistas constituem um elo essencial na historia do pensamento antigo.

Os Sofistas, com efeito, operaram verdadeira revolução espiritual (deslocando o eixo da reflexão filosófica da physis e do cosmo para o homem e aquilo que concerne a vida do homem como membro de uma sociedade) e, portanto, centrando seus interesses sobre a ética, a politica, a retórica, arte, a língua, a religião e a educação, ou seja, sobre aquilo que hoje chamamos a cultura do homem. Portanto, é exato afirmar que, com os Sofistas, inicia-se o período humanista da filosofia antiga.

Esse deslocamento radical do eixo da filosofia se explica pela ação conjunta de
duas diferentes ordens de causas. De um lado, como vimos, a filosofia da physis pouco a pouco exauriu todas as suas possibilidades. Com efeito, todos os caminhos já haviam sido palmilhados e o pensamento “fisico” chegara aos seus limites extremos. Desse modo, era fatal a busca de outro objetivo. Do outro lado, no séc. V a.C. manifestaram-se fermentos sociais, econômico e culturais que, ao mesmo tempo, favoreceram o desenvolvimento da Sofistica e, por seu turno, foram por ele favorecidos.

Os Sofistas souberam captar de modo perfeito essas instâncias da época conturbada em que viveram, sabendo explicita-las e dar-lhes forma e voz. E isso explica por que alcançaram tanto sucesso, especialmente entre os jovens: eles respondiam a reais necessidades do momento, propondo aos jovens a palavra nova que esperavam, já que não estavam mais satisfeitos com os valores tradicionais que a velha geração lhes propunha nem com o modo como os propunha.

Tudo isso permite compreender melhor certos aspectos dos Sofistas, pouco apreciados no passado ou até julgados negativamente, em particular seu modo de difundir cultura, o fato de tornar esta difusão uma profissão, de percorrer varias cidades-Estado, sua liberdade de espirito e a critica em relação à tradição.

PROTÁGORAS

O mais famoso e celebrado sofista foi Protagoras, nascido em Abdera na década de 491–481 a.C., e que morreu pelos fins do século. Viajou por toda a Grécia e esteve em Atenas varias vezes, onde alcançou grande sucesso. Também foi muito apreciado pelos políticos (Péricles confiou-lhe a tarefa de preparar a legislação para a nova colonia de Turi em 444 a.C.). As Antilogias constituem sua principal obra, da qual nos chegaram apenas testemunhos.

A proposta basilar do pensamento de Protágoras era o axioma “o homem é a medida de todas as coisas, das que são por aquilo que são e das que não são por aquilo que não são” (principio do homo mensura). Por “medida”, Protágoras entendia a “norma de juízo”, enquanto por “todas as coisas” entendia todos os fatos e todas as experiências em geral. Tornando-se muito célebre, o axioma foi considerado — e efetivamente é — quase a magna carta do relativismo ocidental. Com efeito, com esse principio, Protágoras pretendia negar a existência de um critério absoluto que discrimine ser e não-ser, verdadeiro e falso. O único critério é somente o homem, o homem individual: “Tal como cada coisa aparece para mim, tal ela é para mim; tal como aparece para ti, tal é para ti.” Este vento que está soprando, por exemplo, é frio ou quente? Segundo o critério de Protágoras, a resposta é a seguinte: “Para quem esta com frio, é frio; para quem não está, não é.” Então, sendo assim, ninguém esta no erro, mas todos estão com a verdade (a sua verdade).

O relativismo expresso no principio do homo mensura terá um aprofundamento adequado na obra mencionada, As Antilogias, que demonstra que “em torno de cada coisa há dois raciocínios que se contrapõem”, isto é, em torno de cada coisa é possível dizer e contradizer, ou seja, é possível apresentar razões que se anulam reciprocamente. E esse, precisamente, sera o nogórdio do ensinamento de Protágoras.
Registra-se também que Protágoras ensinava “a tornar mais forte o argumento mais fraco”. O que não quer dizer que Protágoras ensinasse a injustiça e a iniquidade contra a justiça e a retidão, mas, simplesmente, que ele ensinava os modos como, técnica e metodologicamente, era possível sustentar e levar à vitoria o argumento que, em determinadas circunstâncias, podia ser o mais fraco na discussão (qualquer que fosse o conteúdo em exame).

A “virtude” que Protágoras ensinava era exatamente essa “habilidade” de saber fazer prevalecer qualquer ponto de vista sobre a opinião oposta. O sucesso de seus ensinamentos deriva do fato de que, fortalecidos com essa habilidade, os jovens consideravam que poderiam fazer carreira nas assembleias, nos tribunais, na vida politica.
Para Protágoras, portanto, tudo é relativo: não existe um “verdadeiro” absoluto e também não existem valores morais absolutos (“bens” absolutos). Existe, entretanto, algo que é mais útil, mais conveniente e, portanto, mais oportuno. O sábio é aquele que conhece esse relativo mais útil, mais conveniente e mais oportuno, sabendo convencer também os outros a reconhece-lo e pô-lo em pratica.

Dessa forma, porém, o relativismo de Protágoras recebe forte limitação. Com efeito, pareceria que, enquanto é medida e mensurador em relação à verdade e à falsidade, o homem seja medido em relação à utilidade, ou seja, que, de alguma forma, a utilidade venha a se apresentar como objetiva. Em suma, pareceria que, para Protágoras, o bem e o mal seriam, respectivamente, o útil e o danoso; e o “melhor” e o “pior” seriam o “mais útil” e o “mais danoso”.

Entretanto, com base em tudo o que nos foi legado de sua teoria, está claro que Protágoras não soube dizer em que bases e em que fundamentos o sofista possa reconhecer tal “útil” sociopolítico. Para faze-lo, precisaria ter escavado mais profundamente na essência do homem, para determinar sua natureza. Mas, historicamente, essa tarefa caberá a Sócrates.

GÓRGIAS

Górgias nasceu em Leontini, na Sicília, por volta de 4851480 a.C., e viveu em perfeita saúde física mais de um século. Viajou por toda a Grécia, alcançando amplos consensos em torno de si. A sua obra filosófica mais importante intitula-se Sobre a natureza ou sobre o não-ser (que é uma inversão do titulo da obra de Melisso).

Enquanto Protágoras parte do relativismo para implantar o método da antilogia, Górgias parte do niilismo para construir o edifício de sua retórica. O tratado Sobre a natureza ou sobre o não-ser é uma espécie de manifesto do niilismo ocidental, baseando-se nas três teses seguintes:
  1. Não existe o ser, ou seja, nada existe. Com efeito, os filósofos que falaram do ser determinaram-no de tal modo que chegaram a conclusões que se anulam reciprocamente, de modo que o ser não pode ser “nem uno, nem múltiplo, nem incriado, nem gerado” e, portanto, será nada.
  2. Se o ser existisse, “não poderia ser cognoscível”. Para provar essa afirmação, Górgias procurava impugnar o principio de Parmênides segundo o qual o pensamento é sempre e só pensamento do ser e o não-ser é impensável. Há pensados (por exemplo, podemos pensar em carruagens correndo sobre o mar) que não existem e há não-existentes (Cila, a Quimera etc.) que são pensados. Portanto, há divórcio e ruptura entre ser e pensamento.
  3. Mesmo que fosse pensável, o ser permaneceria inexprimível. Com efeito, a palavra não pode transmitir verazmente coisa nenhuma que não seja ela própria: “Como o que ( . . . ) alguém poderia expressar com a palavra aquilo que vê? Ou como é que isso poderia tornar-se manifesto para quem o escuta sem tê-lo visto? Com efeito, assim como a vista não conhece sons, igualmente o ouvido não ouve as cores, mas os sons; e diz o certo quem diz, mas não diz uma cor nem uma experiência.”
Eliminada a possibilidade de alcançar uma “verdade” absoluta (a alétheia), parece que só restou a Górgias o caminho da “opinião” (doxa). Ele, porém, negou também a opinião, considerando-a “a mais pérfida das coisas”. Procura então um terceiro caminho, o da razão que se limita a iluminar fatos, circunstâncias e situações da vida dos homens e das cidades na sua concretitude e na sua situação contingente, sem chegar a dar a estes um fundamento adequado.

Sua posição em relação à retórica é nova e original. Se não existe verdade absoluta e tudo é falso, a palavra adquire então autonomia própria, quase ilimitada, porque desligada dos vínculos do ser. Em sua independência onto-veritativa, torna-se (ou pode tornar-se) disponível para tudo. E eis que Górgias descobre, precisamente no plano teorético, aquele aspecto da palavra pelo qual (prescindindo de toda verdade), ela pode ser portadora de persuasão, crença e sugestão. A retórica é exatamente a arte que desfruta a fundo esse aspecto da palavra, podendo ser definida como a arte de persuadir, que no séc. V a.C. tinha enorme importância politica. O politico, então, era chamado também de “retor”.
Para Gorgias, portanto, ser retor consiste em “ser capaz de persuadir os juízes nos tribunais, os conselheiros no Conselho, os membros da assembleia popular na Assembleia e, da mesma forma, qualquer outra reunião que se realize entre cidadãos”.




NORMAN GEISLER — A VERDADE É RELATIVA?Trecho retirado do livro Enciclopédia de Apologética (Páginas 864–867).


A relatividade da verdade é normalmente uma premissa do pensamento atual. Mas o cristianismo ortodoxo é baseado na posição de que a verdade é absoluta. Logo, a defesa da possibilidade da verdade absoluta é crucial para a defesa da fé cristã histórica. Segundo as teorias da verdade relativa, algo pode ser verdadeiro para uma pessoa, mas não para todas as pessoas. Ou pode ser verdadeiro numa época, mas não em outra. Segundo a visão absolutista, o que é verdadeiro para uma pessoa é verdadeiro para todas as pessoas, épocas e regiões.

A relatividade da verdade é uma visão contemporânea popular. Mas a verdade não é determinada por voto majoritário. Vamos analisar as razões que as pessoas dão para crer que a verdade é relativa.

Primeira, certas coisas só parecem ser verdadeiras em algumas ocasiões, e não em outras. Por exemplo, muitas pessoas no passado acreditavam que a terra era plana. Agora sabemos que essa afirmação da verdade estava errada. Parece que essa verdade mudou com o passar do tempo. Será que mudou? A verdade muda, ou o conhecimento sobre o que é verdadeiro muda? Bem, certamente o mundo não mudou de cubo para esfera. O que mudou com relação a isso foi nosso conhecimento, não nossa terra. Ele mudou de um conhecimento falso para um verdadeiro.

Na audiência designada de uma afirmação, toda verdade é uma verdade absoluta. Algumas afirmações realmente se aplicam apenas a algumas pessoas, mas a verdade dessas afirmações é tão absoluta para todas as pessoas em todo lugar em todas as épocas quanto uma afirmação que se aplica a todas as pessoas em geral. “Injeções diárias de insulina são essenciais para a sobrevivência” aplica-se a pessoas com algumas formas crônicas de diabete. Essa afirmação tem uma audiência designada aplicada. Não pretende ser uma verdade que se aplica a todo mundo. Mas, se ela se aplica a Paulo, é a verdade sobre Paulo para todo mundo. A advertência de que essa afirmação é falsa para pessoas com um pâncreas saudável não deprecia a verdade da afirmação no seu universo de discurso — diabéticos aos quais é adequadamente dirigida.

Algumas afirmações parecem ser verdadeiras apenas para algumas pessoas. A afirmação: “Estou com calor” pode ser verdadeira a meu respeito, mas não a respeito de outra pessoa, que pode estar com frio. Sou a única pessoa no universo de discurso da afirmação. A afirmação: “Eu estou com calor” (no dia 1.° de julho de 1998, às 15h37) declara que é verdadeiro para todo mundo em todo lugar que Norman Geisler estava com calor nesse momento da história. Ela corresponde a fatos e, portanto, é uma verdade absoluta.

Um professor de frente para os alunos na sala de aula diz: “A porta desta sala está à minha direita” . Mas ela está à esquerda dos alunos. Os relativistas argumentam que certamente essa verdade é relativa para o professor, já que é falsa para a classe. No entanto, pelo contrário, é igualmente verdadeiro para todos que a porta está à direita do professor. Essa é uma verdade absoluta. Jamais será verdadeiro para qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer época que a porta estava à esquerda do professor durante aquela aula naquele dia naquela sala. A verdade de que a porta está à esquerda dos alunos é igualmente absoluta. Parece óbvio que a temperatura freqüentemente é bem alta no Arizona e bem baixa no Pólo Norte.

Então, aparentemente algumas coisas são verdadeiras para alguns lugares e não para outros. Certo? Não. Algumas coisas são verdadeiras com relação a alguns lugares, mas não são verdadeiras em lugares onde as condições são diferentes. Mas essa não é a questão. No universo de discurso da previsão do tempo do Arizona, a afirmação corresponde aos fatos. Então, ela é verdadeira em todos os lugares. A afirmação: “A temperatura está baixa no Pólo Norte” é verdadeira para pessoas no Arizona no verão, ou em Plutão, onde é mais frio que no Pólo Norte. A verdade é o que corresponde aos fatos, e o fato é que é frio no Pólo Norte.

Toda verdade é absoluta. Não há verdades relativas. Pois, se algo é realmente verdadeiro, é realmente verdadeiro para todas as pessoas em todo lugar, em todas as épocas. A afirmação da verdade 7 + 3 = 10 não é apenas verdadeira para matemáticos e não é verdadeira apenas numa aula de matemática. É verdadeira para todo mundo em todo lugar.

A maioria dos relativistas realmente acredita que o relativismo se aplica a todo mundo, não só a eles. Mas é exatamente isso que não podem afirmar se realmente são relativistas. Pois a verdade relativa só é verdadeira para mim, mas não necessariamente para todas as outras pessoas. Então, o relativista que pensa que o relativismo é verdadeiro para todas as pessoas é um absolutista. Tal pessoa acredita, no mínimo, em uma verdade absoluta. O dilema é esse: o relativista coerente não pode dizer: “É verdade absoluta para todo mundo que a verdade é apenas relativamente verdadeira”. E a pessoa não pode dizer: “É apenas relativamente verdadeiro que o relativismo é verdadeiro” . Se é apenas relativamente verdadeiro, o relativismo pode ser falso para alguns ou para todos os outros. Então por que considerá-lo verdadeiro? Ou a afirmação de que a verdade é relativa é uma afirmação absoluta, ou é uma afirmação que jamais pode ser realmente feita, porque quem a faz está acrescentando, todas as vezes, outro “relativamente”. Isso começa uma regressão infinita que jamais redundará na afirmação real.

A única maneira pela qual o relativista pode evitar o doloroso dilema do relativismo é admitir que há pelo menos algumas verdades absolutas. Como foi mencionado, a maioria dos relativistas acredita que o relativismo é absolutamente verdadeiro e que todo mundo deve ser relativista. Nisso jaz a natureza autodestrutiva do relativismo. O relativismo apóia-se no cume da verdade absoluta e quer “relativizar” tudo.

Se o relativismo fosse verdadeiro, o mundo estaria cheio de condições contraditórias. Pois, se algo é verdadeiro para mim, mas falso para você, condições opostas existem. Pois, se digo: “Há leite na geladeira” e você diz: “Não há leite na geladeira” — e ambos estamos certos, deve haver e não haver leite na geladeira ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Mas isso é impossível. Então, se a verdade fosse relativa, uma impossibilidade seria real.

No âmbito religioso isso significaria que Billy Graham está dizendo a verdade quando diz: “Deus existe”, e Madalyn Murray O’Hare também está certa quando afirma: “Deus não existe”. Mas essas duas afirmações não podem ser verdadeiras. Se uma é verdadeira, a outra é falsa. E como elas esgotam as únicas possibilidades, uma deve ser verdadeira.
Se a verdade é relativa, ninguém jamais está errado — mesmo quando estamos errados. À medida que algo é verdadeiro para mim, estou certo mesmo quando estou errado. A desvantagem é que jamais poderia aprender porque aprender é passar do conhecimento falso para um verdadeiro — isto é, do conhecimento absolutamente falso para o absolutamente verdadeiro. A verdade é que absolutos são inevitáveis.

Alega-se que a verdade não pode ser absoluta, já que não temos conhecimento absoluto das verdades. Até a maioria dos absolutistas admite que a maior parte das coisas são conhecidas apenas em termos de níveis de probabilidade. Como, então, podem todas as verdades ser absolutas?

Podemos ter certeza absoluta de algumas coisas.Tenho certeza absoluta de que existo. Na verdade, minha existência é inegável. Pois tenho de existir para fazer a afirmação: “Eu não existo”. Também tenho certeza absoluta de que não posso existir e não existir ao mesmo tempo. E que não existem círculos quadrados. E que 3 + 2 = 5.
Há muitas outras coisas das quais tenho certeza absoluta. Mas mesmo aqui o relativista é mal orientado, ao rejeitar a verdade absoluta simplesmente pela falta de evidência de que algumas coisas são verdadeiras. A verdade pode ser absoluta, não importa quais os nossos motivos para acreditar nela. Por exemplo, se é absolutamente verdadeiro que Sidney, Austrália, está no Oceano Pacífico, então isso é absolutamente verdadeiro, não importa qual a minha evidência ou falta de evidência. Uma verdade absoluta é absolutamente verdadeira em si. Evidência, ou falta dela, não muda um fato. E verdade é o que corresponde aos fatos. A verdade não muda só porque aprendemos algo mais sobre ela.

Outra objeção é que muitas coisas são comparativas — como tamanhos relativos, tais como mais baixo ou mais alto. Como tais elas não podem ser verdades absolutas, já que mudam dependendo do objeto com o qual são comparadas. Por exemplo, algumas pessoas são boas comparadas com Hitler, porém más comparadas com madre Teresa de Calcutá. Ao contrário da afirmação relativista, coisas intermediárias não refutam o absolutismo. Pois os fatos: “João é baixo comparado a um jogador de basquete da NBA (National Basketball Association — Associação Nacional de Basquete)” e “João é alto comparado a um jóquei” são absolutamente verdadeiros em todas as épocas para todas as pessoas. João tem estatura média, e o fato de ser mais baixo ou mais alto depende da pessoa com a qual é comparado. O mesmo acontece com outras coisas intermediárias, tais como mais quente ou mais frio e melhor ou pior.

Se a verdade nunca muda, não pode haver uma nova verdade. Isso significaria que nenhum progresso é possível. Mas descobrimos verdades novas. Esse é o caso das descobertas científicas. Em resposta a isso, “verdade nova” pode ser interpretada de duas maneiras. Pode significar “nova para nós”, como uma nova descoberta da ciência. Mas essa é apenas uma questão de descobrirmos uma “verdade” antiga. Afinal, a lei da gravidade já existia antes de Isaac Newton. Muitas verdades sempre existiram, mas só agora as descobrimos. A outra maneira de interpretar “verdade nova” é que algo novo surgiu que torna possível fazer uma nova afirmação sobre esse assunto que só então passa a ser verdadeira. Mas isso também não é problema. Quando o dia 1.° de janeiro de 2020 chegar, uma nova verdade surgirá. Até esse dia não será verdadeiro dizer: “É l.°de janeiro de 2020”. Mas, quando isso acontecer, será verdadeiro para todas as pessoas em todos os lugares para sempre. Portanto, verdades “velhas” não mudam e as “novas” não se realizam. Quando algo é verdadeiro, é sempre verdadeiro — para todos.

Também alega-se que o conhecimento da verdade não é absoluto, já que nosso conhecimento aumenta. O que é verdadeiro hoje pode ser falso amanhã. O progresso da ciência é prova de que a verdade está constantemente mudando. Essa objeção não observa que não é a verdade que está mudando, mas nosso conhecimento dela. Quando a ciência realmente progride, ela não passa da verdade velha para a nova, mas do erro para a verdade. Quando Copérnico argumentou que a terra gira em torno do sol e não o inverso, a verdade não mudou. O que mudou foi o conhecimento científico sobre o que gira em torno de quê.

A verdade é restrita. Há apenas uma resposta para 4 + 4. Não é 1. Não é 2, 3,4, 5, 6, 7, 9, 10 ou qualquer outro número. É 8 e apenas 8. É restrita, mas correta. Os não-cristãos geralmente afirmam que os cristãos são tacanhos, porque a firmam que o cristianismo é verdadeiro e todos os outros sistemas não-cristãos são falsos. No entanto, o mesmo ocorre com os não-cristãos que a firmam que oque eles consideram verdade é verdadeiro, e todas as crenças opostas são falsas. Isso também é tacanho. A questão é que se C (cristianismo) é verdadeiro, conclui-se que todo não-c é falso. Da mesma form a, se h (p. ex., humanismo ) é verdadeiro, todo não-H é falso. Ambas as visões são igualmente tacanhas. A verdade é assim . Cada reivindicação da verdade exclui reivindicações contraditórias. O cristianismo não é mais tacanho que qualquer outro grupo de crenças, seja o ateísmo, o agnosticismo,o ceticismo ou o panteísmo.

A afirmação de que os que acreditam na verdade absoluta são dogmáticos não resolve a questão. Se toda verdade é absoluta — verdadeira para todas as pessoas, épocas e lugares — todas as pessoas que afirmam que algo é verdadeiro são “dogmáticas” . Até o relativista que afirma que o relativismo é verdadeiro é dogmático. Essa pessoa afirma ter a única verdade absoluta que pode ser afirmada, ou seja, que todas as outras coisas são relativas.

Algo importante é ignorado nessa acusação de dogmatismo. Há uma grande diferença entre a acusação pejorativa de que a crença na verdade absoluta é dogmática e a maneira em que alguém acredita nisso. Sem dúvida a maneira pela qual muitos absolutistas afirmam e transmitem suas convicções é tudo, menos humilde. No entanto, nenhum agnóstico consideraria convincente um argumento contra o agnosticismo que afirme que alguns agnósticos comunicam suas convicções de maneira dogmática.

Contudo, existe uma distinção importante a ser lembrada: a verdade é absoluta, mas nosso entendimento não é. O fato de haver a verdade absoluta não significa que nosso conhecimento sobre ela seja absoluto. Essa constatação em si mesma deveria tornar os absolutistas humildes ao defender suas convicções. Pois, apesar de a verdade ser absoluta, nosso conhecimento sobre a verdade absoluta não é absoluto. Como criaturas finitas, crescemos no nosso conhecimento da verdade.

A verdade pode ser testada de várias maneiras, mas deve ser entendida apenas de uma maneira. Há uma realidade, à qual afirmações ou idéias devem se conformar para ser consideradas verdadeiras. Pode haver várias maneiras diferentes de defender diferentes reivindicações da verdade, mas há apenas uma maneira adequada de definir a verdade, ou seja, como correspondência. A confusão entre a natureza da verdade e a verificação da verdade é a base da rejeição da visão de correspondência da verdade.

Semelhantemente, há uma diferença entre o que a verdade é e o que a verdade faz. A verdade é correspondência, mas a verdade tem certas conseqüências. A verdade em si não deve ser confundida com seus resultados ou com sua aplicação. Deixar de fazer essa distinção leva a visões erradas da natureza da verdade. A verdade é o que corresponde à realidade ou à situação que pretende descrever. Uma falsidade é o que não corresponde.





WILIAM LANE CRAIG — A RAZÃO E A LÓGICA NÃO SÃO REDUZÍVEIS À MOLÉCULAS E À ÁTOMOSTexto original disponível em: #545 Lodaçal ateísta

Caro Dr. Craig, 
Eu me converti recentemente ao cristianismo; até dois meses atrás, era ateu niilista. Como fui ateu a maior parte da minha vida, a maioria de meus amigos também são ateus, muito ávidos em me dizer como estou errado em relação a Deus usando os escritos de Hitchens, Dawkins, etc. É por sua causa, de Alvin Plantinga, Frank Turek, John Lennox, Ravi Zacharias e um pouco de C. S. Lewis que comecei a perceber que o cristianismo deve ser verdadeiro. 
O problema que meus amigos ateus mais mencionam contra mim é que pensam que a lógica e a razão se devem a composições químicas no cérebro. Sempre me dizem como todos somos química e eletricidade, e tudo se reduz a isto.Minha pergunta é: como mostrar que a razão e a lógica não são reduzíveis a moléculas e átomos? 
Ultimamente, ando um pouco irritadiço com eles e pergunto coisas como: “Se a razão é reduzível à química, quero que vocês parem de provar as coisas usando a ciência e a lógica (já que são produtos de átomos se movimentando) e provem tudo quimicamente e com tecido cerebral”. Ou: “Se tudo é matéria, provem-me tudo materialmente”. Sempre me respondem assim: “Lá no passado distante, nos tempos das cavernas, você acha que entenderiam algo do que está dizendo? Isso já serve para mostrar como a lógica se desenvolveu junto com o cérebro humano!”. Então, digo-lhes que, se tudo o que somos é química, não podemos chegar a conclusões lógicas ou científicas, visto que moléculas determinam nossos padrões de pensamento. Também digo que a ciência pressupõe que a lógica é verdadeira, e a lógica jamais poderá ser achada ou descoberta dentro do universo, uma vez que descobrir a lógica no cérebro como molécula ou átomo ou força física no universo usando a ciência significaria que estaríamos usando a lógica para descobrir a lógica, o que não faz nenhum sentido. Eles me dizem, então, que devo parar de pressupor que a lógica é verdade, e neste ponto desisto. 
Existe algo falacioso em minhas proposições? Como posso convencê-los a parar de pressupor que o materialismo é verdadeiro? Qualquer ajuda sua seria uma maravilha. 
Obrigado pela atenção. 
Matthew 
Canadá
Não acho que você precise de ajuda, Matthew! Suas respostas a seus amigos vão direto ao ponto. Não consigo segurar a risada diante do incoerente lodaçal cheio de contradições em que se metem alguns desses niilistas. É de assustar como essas pessoas ficam cegas à sua própria incoerência.

Se pensam que a lógica e a razão não são confiáveis porque “a lógica e a razão se devem a composições químicas no cérebro”, pergunte, então: “como vocês chegaram a essa conclusão?”. Se usaram lógica e razão, a afirmação deles se contradiz. Se não usaram, por que acreditar no que dizem? Essas pobres almas iludidas estão atoladas na incoerência e sequer o percebem.

Quando replicam: “Lá no passado distante, nos tempos das cavernas, você acha que entenderiam algo do que está dizendo? Isso já serve para mostrar como a lógica se desenvolveu junto com o cérebro humano!”, você deve explicar que, obviamente, a matemática e a lógica se desenvolvem ao longo do tempo à medida que as pessoas se tornam mais inteligentes e perspicazes. Isto, porém, não implica que 2+2 não fosse 4 antes das pessoas perceberem esta verdade. Pergunte se, lá na época das cavernas, antes que as pessoas entendessem a ideia de um planeta, a terra era redonda — ou será que a terra ficou redonda com o desenvolvimento da ciência? Estão, obviamente, confundindo conhecimento e realidade.

Quando dizem para “parar de pressupor que a lógica é verdade”, a reductio ad absurdum está completa. Você pode perguntar se acham que aquela afirmação é verdadeira, e não falsa — neste acaso, estão pressupondo que a lógica lei da contradição é verdadeira — , ou qual inferência tiram dela — e, neste caso, terão de pressupor as lógicas regras de inferência. Mas você deve estar correto que, quando alguém está tão atolado na irracionalidade, não faz muito sentido discutir mais a fundo. É aí que, talvez, simplesmente ser um amigo amoroso seja o melhor evangelismo.




NORMAN GEISLER — AGNOSTICISMO, ACOGNOSTICISMO, EMPIRISMO, POSIVISMO Trecho retirado do livro Enciclopédia de Apologética (Páginas 10–12, 16–20, 98, 892).

O agnosticismo afirma que não podem os conhecer a Deus; o acognosticismo afirma que não podem os falar significativamente (cognitivamente) sobre Deus.
Restringir o que é significativo é limitar o que poderia ser verdadeiro, já que apenas o significativo pode ser verdadeiro. Então, a tentativa de limitar o significado ao descritivo ou verificável é afirmar que a verdade deve, ela mesma, estar sujeita a algum teste. Se ela não pode ser testada, então não pode ser falsificada e é, pelos próprios padrões, uma crença sem sentido.

Não se pode delimitar a linguagem e o pensamento sem transcender esses mesmos limites. É contraditório expressar o argumento de que o inexprimível não pode ser expressado. Da mesma forma, até mesmo pensar que o impensável não pode ser pensado é contraditório. A linguagem (pensamento) e a realidade não podem ser mutuamente excludentes, pois toda tentativa de separá-las completamente implica alguma interação entre elas. Se uma escada foi usada para chegar ao alto de uma casa, não se pode negar a capacidade da escada de levar o indivíduo até lá.

No sentido restrito da não-falsificabilidade empírica, ela é muito restritiva. Nem tudo precisa ser empiricamente falsificável. Na verdade, mesmo esse princípio não é empiricamente falsificável. Mas no sentido mais amplo do que é testável e argumentavel, certamente o princípio é útil. A não ser que haja critérios para determinar verdade e falsidade, nenhuma afirmação sobre a verdade pode ser defendida. Tudo, incluindo-se posições diametralmente opostas, pode ser verdadeiro.

Em segundo lugar, nem tudo o que é verificável precisa ser falsificável da mesma maneira. Com o John Hick demonstrou, há uma relação assimétrica entre verificabilidade e falsificabilidade. É possível alguém verificar a imortalidade pessoal ao observar conscientemente seu próprio funeral. Mas não é possível provar que a imortalidade pessoal seja falsa. Quem não sobrevive à morte não está lá para refutar nada. E outra pessoa não poderia refutar a imortalidade de uma terceira sem ser onisciente. Mas, se é necessário supor que exista um a mente onisciente ou um Deus onisciente, então seria em inerentemente contraditório usar o argumento da falsificação para refutar a existência de Deus.

Assim, podemos concluir que toda afirmação sobre a verdade deve ser testável ou argumentavel, mas nem todas as afirmações sobre a verdade precisam ser falsificáveis. O estado de inexistência total de qualquer coisa seria impossível de falsificar, já que não haveria ninguém nem maneira de refutá-lo. Por outro lado, a existência de algo é testável por experiência ou inferência.

Não há contradição em dizer: “Eu sei o suficiente sobre a realidade para afirmar que existem algum as coisas sobre ela que eu não posso saber” . Por exemplo, podemos saber o suficiente sobre técnicas de observação e relato para dizer que é impossível sabermos a população exata do mundo num determinado instante (incognoscibilidade na prática). Da mesma forma, podemos saber o suficiente sobre a natureza da finitude para dizer que é impossível a seres finitos conhecer completamente um ser infinito.

O agnosticismo completo reduz-se à afirmação auto destrutiva: “conhecemos o suficiente sobre a realidade para afirmar que nada pode ser conhecido sobre ela”. Essa afirmação é contraditória. Quem sabe algo sobre a realidade não pode afirmar ao mesmo tempo que toda realidade é incognoscível. E quem não sabe absolutamente nada sobre a realidade não tem base para fazer uma afirmação sobre a realidade. Não é suficiente dizer que o conhecimento da realidade só pode ser pura e completamente negativo, isto é, o conhecimento só pode dizer o que a realidade não é. Toda afirmação negativa pressupõe uma afirmação positiva; não se pode afirmar significativamente que algum a coisa não é e estar completamente desprovido de conhecimento dessa coisa. Conclui-se que o agnosticismo total derrota a si mesmo. Ele presume o conhecimento da realidade para negar todo o conhecimento dela.

O argumento proposto por Kant de que as categorias de pensamento (tais como unidade e causalidade) não se aplicam à realidade também é falho. A não ser que as categorias da realidade correspondessem às categorias da mente, nenhuma afirmação poderia ser feita sobre a realidade, nem mesmo a afirmação feita por Kant. A não ser que o mundo real fosse inteligível, nenhuma afirmação sobre ele se aplicaria. É necessária um a pré-formação da mente à realidade para falar algo sobre ela — positivo ou negativo. De outra forma, estaremos pensando sobre uma realidade inimaginável. Pode-se apresentar o argumento de que o agnóstico não precisa fazer nenhuma afirmação sobre a realidade, mas apenas definir os limites do que podem os saber. Mesmo tal argumento, no entanto, é contraditório. Dizer que alguém não pode saber mais que os limites do fenômeno ou da aparência é com o tentar fazer um a linha na areia com as duas pernas. Estabelecer limites tão firmes equivale a ultrapassá-los. Não é possível afirmar que a aparência termina aqui e a realidade começa ali a não ser que se possa ver até certa distância do outro lado. Como alguém pode saber a diferença entre aparência e realidade se não viu o suficiente da aparência e da realidade para fazer a comparação?

A tentativa cética geral de anular todo julgamento sobre a realidade também é contraditório, já que implica julgamento sobre a realidade. De que outra maneira alguém saberia que suspender todo julgamento sobre a realidade é o melhor caminho, a não ser que realmente soubesse que a realidade é incognoscível? O ceticismo implica agnosticismo; conforme demonstrado acima, o agnosticismo implica conhecimento sobre a realidade. O ceticismo ilimitado que elogia a suspensão de todo o julgamento sobre a realidade implica um julgamento demasiado abrangente sobre a realidade. Por que desestimular todas as tentativas de chegar à verdade, a não ser que se saiba de antemão que são fúteis? E como se pode ter essa informação de antemão sem já saber algo sobre a realidade?

A alegação feita por Hume de que todas as afirmações significativas são uma relação de idéias ou questões de fato quebra suas próprias regras. A afirmação não se encaixa em nenhuma das duas categorias. Logo, por definição, é sem sentido. Não poderia ser absolutamente uma relação de idéias, porque nesse caso não descreveria a realidade, com o dá a entender. Não é puramente uma afirmação fatual porque alega cobrir mais que assuntos em píricos. Em resumo, a distinção de Hume é a base para o princípio da verificabilidade em pírica de Ayer, e o princípio da verificabilidade em si não é empiricamente verificável.

O atomismo empírico radical de Hume no qual todos os eventos são “completamente desconexos e separados”, e o próprio “eu” é apenas um amontoado de impressões sensoriais é inexeqüível. Se todas as coisas fossem desconectadas, não haveria nem com o fazer essa afirmação específica, já que certa unidade e conexão são sugeridas na afirmação de que tudo é desconectado. A firmar que “eu não sou nada além de impressões sobre mim mesmo” é contraditório, pois existe sempre a suposta unidade do “eu” que faz a afirmação. Mas não se pode assumir um “eu” unificado a fim de negá-lo.

O agnosticismo ilimitado é autodestrutivo: implica conhecimento sobre a realidade para negar a possibilidade de sua existência. Tanto o ceticismo quanto os não-cognitivismos (acognosticismo) podem ser reduzidos ao agnosticismo. A não ser que seja impossível conhecer o real, é desnecessário abrir mão da possibilidade de qualquer conhecimento cognitivo ou dissuadir os homens de fazer qualquer julgamento sobre ele.

O agnosticismo ilimitado é uma forma sutil de dogmatismo. Ao descartar completamente a possibilidade de qualquer conhecimento do que é real, ele fica no extremo oposto da posição que afirma o conhecimento total da realidade. Ambos os extremos são dogmáticos. Ambos são posições obrigatórias relativas ao conhecimento, contrastantes com a posição de podermos saber ou sabermos algo sobre a realidade. Simplesmente não há processo além da onisciência que permita fazer afirmações tão abrangentes e categóricas. O agnosticismo é dogmatismo negativo, e todo negativo pressupõe um positivo. Logo, o agnosticismo total não é apenas auto destrutivo; é autodivinizador. 

Apenas a mente onisciente poderia ser totalmente agnóstica, e homens finitos evidentemente não são onisciêncientes. Assim , aporta permanece aberta para algum conhecimento da realidade. A realidade não é incognoscível.

O golpe mortal do princípio da verificação de Ayer é o fato contraditório de que ele não é empiricamente verificável. Pois, segundo o critério de verificação, todas as afirmações significativas devem ser verdadeiras por definição ou comprováveis empiricamente. Mas o princípio de verificação não é nenhum dos dois. Por seus próprios padrões, o princípio da verificabilidade não faz sentido.

E também não escapa do dilema ao criar uma terceira categoria para incluir a significância do princípio da verificação, mas para excluir todas as afirmações metafísicas e teológicas. Pois toda tentativa de definir tal princípio falhou. No fim, a maioria dos membros do Círculo de Viena original descartou seu positivismo lógico restrito, incluindo-se o próprio Ayer.

Os princípios de verificação revisados não sobreviveram. Toda tentativa de expulsar a metafísica e introduzir em seu lugar a verificação por qualificação descobriu que a metafísica reaparecia pela porta dos fundos, renovada pelas qualificações ampliadas que permitiam afirmações metafísicas. As afirmações mais restritas de verificação inevitavelmente eliminaram o próprio princípio de verificação. As afirmações mais amplas do princípio que não eram contraditórias não eliminaram sistematicamente todas as afirmações metafísicas e teológicas.

O problema do positivismo lógico é que ele tentou legislar o que as pessoas queriam dizer em vez de ouvir o que de fato diziam. A firmações éticas são o caso clássico em questão. Uma afirmação do tipo “Não faça isso” não quer dizer “Não gosto dessa ação”. Significa “Você não pode/deve fazer isso” . É errado reduzir deve para é, o prescritivo para o descritivo. Também é um erro reduzir “você deve” para “eu acho que é errado”.

Da mesma forma, afirmações sobre Deus não precisam ser reduzidas a tautologias nem afirmações empíricas para ser significativas. Por que as afirmações sobre um Ser transempírico (Deus) deveriam estar sujeitas a critérios empíricos? A firmações metafísicas são significativas no contexto metafísico usando critérios metafísicos. 

Ao contrário dos positivistas lógicos, Wittgenstein não nega totalmente a significância da linguagem religiosa. Ela continuou sendo uma forma legítima de linguagem e baseava-se numa experiência significante. Além disso, Wittgenstein não acompanhava o Círculo de Viena na afirmação da verificabilidade empírica. Eles insistiam em que apenas tautologias vazias, que são verdadeiras por definição ou conhecidas por meio dos sentidos, podem ter significado. Wittgenstein rejeitou essa forma de positivismo, percebendo que significado deve ser ouvido, não legislado. Portanto, não abraçou o ateísmo. Era um teísta fideísta.
Wittgenstein foi o arqui-inimigo da visão platônica de que há uma correspondência unívoca entre nossas idéias e as de Deus. Essa visão agostiniana ele rejeitou completamente. Não há correspondência entre nosso pensamento e o de Deus.

Porém, sua visão está aberta para sérias críticas. Todas as formas de fideísmo são insustentáveis. Tomar suas obras como justificação racional da fé fideísta não-racional é contraditório. Se ele não dá justificação racional para suas crenças, elas simplesmente são proposições infundadas que nenhuma pessoa razoável deve aceitar.

Ele também segue Kant numa falsa dicotomia entre fato e valor. Eles viam cada um deles em esferas totalmente separadas. Mas esse não é o caso. Seres humanos combinam ambos. Não se pode atacar a facticidade humana (a presença física do corpo) sem atacar o valor da vida e personalidade. Não se pode separar estupro ou genocídio do valor do objeto que está no centro dessas ações. Na teologia, o fato da morte de Cristo não pode ser separado do seu valor redentor.

Wittgenstein acreditava que estamos presos numa linguagem que não nos diz nada sobre a esfera de valor além da linguagem em si. Isso é contraditório. Qualquer tentativa de proibir afirmações sobre a esfera mística além da linguagem transgride essa proibição. Como o agnosticismo de Kant, a pessoa não pode saber que ela não pode saber, e não pode dizer que não pode dizer. Ao afirmar que o místico não pode ser proferido, a pessoa profere algo sobre ele.

Entre os legados de Wittgenstein, nenhum é mais letal que a visão convencionalista de significado. Não é possível que todo significado seja relativo. Se fosse, a afirmação “Todo significado é relativo” não faria sentido. Como em outras tentativas de negar significado objetivo, Wittgenstein teve de usar o significado objetivo para suas afirmações. 




OLAVO DE CARVALHO — A PSICOLOGIA DA DÚVIDATexto original disponível em: Descartes e a psicologia da dúvida

Descartes assegura-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança na solidez metafísica do ego pensante surge como poderosa compensação psicológica para a perda da confiança na realidade do “mundo”.
Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que antecedem o estado de dúvida, Descartes é estranhamente evasivo quanto ao estado de dúvida mesmo. Na verdade, ele não o descreve: afirma-o, apenas, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe.

O sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita de sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida — está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. E, no instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, e luta para se estabelecer como afirmação ou negação; mas fracassa, e é só neste fracasso que consiste precisamente, a dúvida. Segue-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça.

Posso efetivamente produzir uma negação hipotética e repeti-la indefinidamente. Posso mesmo ampliá-la — hipoteticamente, é claro — até que abranja a totalidade do que julgo saber. Mas não posso “duvidar” do meu saber sem ao mesmo tempo afirmá-lo reiteradamente, na medida em que só assim poderei intercalar às suas afirmações sucessivas as sucessivas negações, e a estas as afirmações, cujo círculo vicioso constitui a dúvida.

Descartes diz que a dúvida é uma certeza no instante em que é pensada. Mas isto é falso: o que é certeza é a reflexão posterior que afirma a realidade da experiência da dúvida. No instante mesmo da dúvida, o que há é, como vimos, uma alternância entre afirmação e negação, e portanto a impossibilidade mesma de afirmar um estado qualquer, se por estado entendemos, como se deve entender, a coincidência entre um juízo de fato e o sentimento que o valoriza negativa ou positivamente, como ocorre na tristeza, na raiva, na pressa, na esperança etc. A dúvida não é um estado, pela simples razão de que nela o sentimento, que pode ser de ansiedade, de esperança, de curiosidade, etc., não coincide com um juízo determinado, mas provém justamente da impossibilidade de afirmar ou negar um juízo. Ela é antes um momento de suspensão entre estados, um vazio agitado que contém em germe vários estados possíveis — pelo menos dois — e não se resolve em nenhum deles sem suprimir-se a si mesma. O homem portanto nunca “está” em dúvida: apenas passa por ela, precisamente como transição entre estados.

Aquele que reflete sobre a dúvida sabe que ainda é “o mesmo” que teve a dúvida; e se o ato de duvidar é formalmente distinto do ato da reflexão, o eu consciente, ao refletir, sabe que é sujeito de dois atos distintos — distintos logicamente e distintos no tempo — , donde se conclui que é esse eu é logicamente e temporalmente anterior aos dois atos e independente deles: não é o ato da dúvida que funda a certeza do eu, mas, ao contrário, a certeza da continuidade do eu é a garantia única de que a dúvida foi realmente vivenciada. Pois a dúvida, se não recebesse da reflexão posterior o nome que lhe confere a aparente unidade de um estado, acabaria por se reduzir a mera sucessão de negações e afirmações irrelacionadas, sucessivas alucinações de um sujeito esquizofrenicamente plural, destituído do império de si e dissolvido no fluxo atomístico dos seus estados.

Sendo formalmente distintos, os dois atos são distintos também empiricamente, isto é, no tempo: primeiro duvido (isto é, vou e venho entre sucessivas afirmações e negações), depois reflito que duvidei (isto é, unifico sob o nome “dúvida” essa multiplicidade de vivências antagônicas). Mas a unidade do eu, que está subentendida nessa reflexão mesma, e portanto na certeza da dúvida, é aquela continuidade no tempo, que se denomina memória e recordação: a memória, estando pressuposta na reflexão, é lógica e temporalmente anterior a ela: longe de poder fundar a nossa confiança na memória, é a dúvida que depende dela para ter um fundamento lógico e para tornar-se possível no campo dos fatos psicológicos.

A possibilidade da dúvida repousa inteiramente no nosso poder de conceber que as coisas sejam de um outro modo que não aquele com que se nos apresentam num dado momento. A dúvida assenta-se numa suposição; ela requer e subentende o poder de supor. Ora, tendo as coisas se apresentado ao sujeito de um certo modo, e não de outro, este outro e suposto modo só pode apresentar-se à consciência como obra do sujeito mesmo, como produto de imaginação ou conjetura. Para saber que duvida, é necessário então que o sujeito saiba que supôs; que se reconheça portanto como sujeito não apenas de dois atos, como acabamos de ver, mas de três: o ato de duvidar, o ato de refletir a dúvida e, antes de ambos, o ato de supor ou imaginar.

Se o sujeito não percebesse nenhuma diferença entre as coisas tal como se lhe apresentam e as coisas tal como as supõe, não poderia tomar consciência de que supôs, pois não haveria para ele diferença entre supor e perceber. Eis, portanto, que a consciência dessa diferença é, ela também, um requisito e um fundamento da possibilidade da dúvida. Para duvidar, necessito distinguir, na representação, o dado e o construído, o recebido e o inventado, aquilo que me vem pronto e aquilo que faço e proponho.

Não é possível portanto duvidar da realidade do mundo sem saber de antemão que esta dúvida, e a suposição que a fundamenta, são puras invenções do próprio sujeito, e que esta invenção é formal e temporalmente distinta do ato de perceber, bem como do conteúdo percebido. A dúvida é uma suposição de que um mundo inventado é mais válido que o mundo recebido, suposição que se funda por sua vez na consciência de inventar, de supor e de fingir. A dúvida quanto à realidade do mundo é sempre e necessariamente um fingimento, e quanto mais o fingidor se esforce para levar esta dúvida a sério, para torná-la cada vez mais verossímil, tanto mais o brilho mesmo da performance atestará a diferença entre o verossímil e o verdadeiro, assim como, no teatro, concedemos nossos aplausos ao ator precisamente porque sabemos que ele não é o personagem.

Mas esta consciência de fingir seria impossível se não se fundasse, a seu turno, na consciência da diferença entre pensar e ser, imaginar e agir. Pois, subentendida a consciência da diferença entre supor e perceber, paralelamente à consciência que o eu tem de suas próprias ações, não haveria como negar que o eu pensante tem consciência da diferença entre ação suposta e ação realizada, de vez que a ação realizada não é somente pensada, mas percebida fisicamente, exatamente como os seres do mundo sensível. Não posso portanto colocar em dúvida os seres do mundo sensível sem no mesmo ato colocar também em dúvida os atos físicos que me vejo realizando, como por exemplo os movimentos de minhas mãos e pernas. Mas, ao mesmo tempo, não os posso colocar em dúvida sem questionar, no mesmo instante, a continuidade e unidade do eu, a qual no entanto está pressuposta, como vimos, no ato mesmo de duvidar do que quer que seja. 

Eis aí outro motivo pelo qual a dúvida, sendo dúbia por sua natureza mesma, não poderia instalar-se senão pondo-se também a si mesma em dúvida, isto é, sabendo-se fundada numa suposição e num fingimento voluntário. Eis também por que a dúvida é tão rara e dificultosa: ela implica um movimento que se desmente a si mesmo, que coloca em questão as condições mesmas que o possibilitam.

Finalmente, a dúvida só é possível quando se sabe que algo, seja no percebido, seja no suposto, é insatisfatório, que não atende a um requisito fundamental de veracidade. Mas como poderia o sujeito dubitante exigir veracidade de suas suposições ou percepções se não tivesse nenhuma ideia a respeito da veracidade? Esta exigência seria inconcebível sem uma ideia da verdade, ainda que como mero objeto imaginário de desejo. O desejo de fundamento pressupõe no sujeito ao menos a possibilidade de imaginar que seus conhecimentos possam ser mais seguros do que realmente ele sente que o são num dado momento, ou seja, a verdade como ideal e a opção pela verdade. Mas, ao mesmo tempo, vimos que o sujeito não conhecia esta verdade somente como ideal abstrato, mas já tinha ideia de pelo menos uma diferença efetiva entre verdade e falsidade: a diferença entre o dado e o suposto, acompanhada da consciência verdadeira de que o suposto não foi dado, nem dado o suposto.

A dúvida ergue-se, assim, sobre todo um edifício de dados e pressupostos: longe de ser logicamente primeira, ela é um produto requintado e elaboradíssimo de uma máquina de saber. Longe de ter um poder fundante, ela não é senão uma manifestação mais ou menos acidental e secundária de um sistema de certezas.


WILLIAM LANE CRAIG - A BASICALIDADE DA CRENÇA EM DEUS
Trecho retirado do livro Apologética Contemporânea (Páginas 36-39) e Filosofia e Cosmovisão Cristã (Página 208-209)

Apelando ao que ele (erroneamente, penso eu) chama de objeção reformada à teologia natural, Alvin Plantinga atacou mais recentemente o racionalismo teológico no que tange à fé em Deus. Ele tenta defender que a fé em Deus e nas doutrinas centrais do cristianismo está racionalmente muito distante de qualquer alicerce de evidências para a fé.

Isso o põe em conflito com o que ele chama de objeção evidencialista à fé teísta. Segundo os evidencialistas, estamos racionalmente justificados ao crer que uma proposição é verdadeira apenas se essa proposição é fundamental para o conhecimento ou é determinada por evidências que, no fundo, estão baseadas nesse fundamento. De acordo com esse ponto de vista, como a proposição “Deus existe” não é fundamental, seria irracional crer nela sem evidências racionais da sua verdade.

Mas Plantinga pergunta: Por que a proposição “Deus existe” não pode ser ela mesma parte do fundamento, de modo que nenhuma evidência racional seja necessária? Os evidencialistas respondem que somente proposições realmente básicas podem fazer parte do fundamento do conhecimento. Então, quais critérios determinam se uma proposição é ou não realmente básica? A réplica típica dos evidencialistas é que apenas proposições autoevidentes ou incontestáveis são realmente básicas. Por exemplo, a proposição: “A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa” é evidentemente verdadeira. De modo semelhante, a proposição: “Estou sentindo dor” é incontestavelmente verdadeira porque, mesmo que meu ferimento seja apenas imaginário, ainda é verdade que estou sentindo dor. Uma vez que a proposição “Deus existe” não é nem autoevidente nem incontestável, ela não é realmente básica e por isso requer evidências para que se possa crer nela. Crer nessa proposição sem evidências é, portanto, irracional.

Plantinga não nega que proposições autoevidentes e incontestáveis sejam realmente básicas, mas pergunta como sabemos serem elas as únicas proposições ou convicções realmente básicas. Se forem, somos todos irracionais, já que normalmente aceitamos numerosas convicções que não se baseiam em evidências nem são autoevidentes ou incontestáveis. Por exemplo, pense na convicção de que o mundo não foi criado cinco minutos atrás com recordações implantadas, alimentos do café da manhã no estômago que na verdade nunca ingerimos e outras indicações de idade. Certamente é racional crer que o mundo existe há mais de cinco minutos, apesar de não haver evidências para isso. Os critérios dos evidencialistas para as coisas realmente básicas têm de ser invalidados. Na verdade, o que dizer da condição desses critérios? Será que a proposição: “Somente proposições autoevidentes ou incontestáveis são realmente básicas” é em si mesma realmente básica? Evidentemente não, pois ela certamente não é autoevidente nem incontestável. Por isso, para crermos nessa proposição, carecemos de evidências de que ela é verdadeira. Essas evidências não existem. A proposição acaba não passando de uma definição arbitrária — e não muito razoável! Portanto, os evidencialistas não podem excluir a possibilidade de que a fé em Deus é uma convicção realmente básica.

Na verdade, Plantinga, seguindo João Calvino, entende que a fé em Deus é realmente básica. O ser humano tem uma capacidade inata, natural, de apreender a existência de Deus, assim como tem a capacidade natural de aceitar as verdades da percepção (como “eu vejo uma árvore”). Nas circunstâncias apropriadas — como momentos de culpa, gratidão ou o senso da ação de Deus na natureza — o ser humano apreende naturalmente a existência de Deus. Assim como certas convicções conceituais, como “eu vejo uma árvore”, são realmente básicas nas circunstâncias adequadas, a fé em Deus é realmente básica em circunstâncias adequadas. Nem a existência da árvore nem a de Deus é inferida da nossa experiência das circunstâncias. Mas estar nas circunstâncias adequadas torna a convicção realmente básica; a fé seria irracional em circunstâncias não adequadas. Assim, a convicção básica de que Deus existe não é arbitrária, pois é adequadamente mantida apenas por uma pessoa em circunstâncias adequadas. De modo semelhante, ter fé realmente básica em Deus não compromete a pessoa com a posição relativista de que praticamente qualquer fé pode ser realmente básica para um adulto normal. Na ausência de circunstâncias adequadas, várias crenças consideradas básicas por certas pessoas serão arbitrárias e irracionais. Mesmo na ausência de um critério adequado do que é realmente básico, que substitua o critério evidencialista falho, o fato é que podemos saber que algumas convicções simplesmente não são realmente básicas. Portanto, o cristão que tem fé realmente básica em Deus pode legitimamente negar que outras crenças são realmente básicas. Plantinga, assim, insiste em que sua epistemologia não é fideísta; as considerações da razão incluem não apenas proposições inferidas, mas também proposições realmente básicas. Deus nos fez de tal modo, que naturalmente formamos a fé em sua existência em circunstâncias adequadas, assim como cremos em objetos perceptíveis, na realidade do passado etc. Por isso, crer em Deus está entre as considerações da razão, não da fé.

Plantinga enfatiza que a natureza basilar da crença de que Deus existe não implica que não se possa duvidar dela. Essa convicção é anulável; isso quer dizer que pode ser derrotada por outras crenças incompatíveis que venham a ser aceitas pelo teísta. Nesse caso, a pessoa em questão tem de abrir mão de algumas convicções se quiser permanecer racional, e talvez sua fé em Deus seja descartada. Assim, por exemplo, um cristão que depara com o problema do mal defronta-se com algo que pode derrotar sua fé em Deus. Se quiser permanecer racional em sua fé cristã, precisa ter uma resposta para aquilo que pode derrotá-la. E aí que entra a apologética cristã; ela pode ajudar a formular respostas para as ameaças, a exemplo da defesa do livre-arbítrio em resposta ao problema do mal. Mas Plantinga também argumenta que, no campo racional, a crença original em si mesma pode, em alguns casos, superar de tal maneira o elemento opositor, que, inerentemente, acaba derrotando sua ameaça ostensiva. Ele dá o exemplo de alguém acusado de um crime, que tem contra si todas as evidências, apesar de saber que é inocente. Nesse caso, essa pessoa não é racionalmente obrigada a abandonar a convicção da própria inocência e aceitar as evidências de que é culpada. A certeza de que não cometeu o crime derrota inerentemente o elemento opositor com suas evidências. Plantinga faz a aplicação teológica propondo que a fé em Deus pode, de modo semelhante, derrotar inerentemente tudo o que pode levantar-se contra ela para derrotá-la. Plantinga sugere que o mecanismo que pode dar uma base tão forte para a fé em Deus é o senso implantado e natural do divino (o sensus divinitatis, de Calvino), aprofundado e acentuado pelo testemunho do Espírito Santo.

Plantinga argumenta que a fé em Deus não é algo meramente racional para a pessoa que a considera realmente básica, mas que essa fé está tão fundamentada que podemos dizer que essa pessoa tem conhecimento de que Deus existe. Uma fé que é apenas racional poderia ser falsa. Quando dizemos que uma fé é racional, entendemos que a pessoa que a tem está no seu direito epistêmico de tê-la, ou que não apresenta falhas em sua estrutura noética ao crer assim. Porém, para que a fé constitua conhecimento, ela tem de ser verdadeira e, em certo sentido, justificada ou fundamentada para a pessoa que a tem.

Freqüentemente, somos justificados por sustentar crenças que se revelam falsas (p. ex., o objeto que eu pensava ser uma árvore revela-se uma imitação em papel machê). Seria nossa crença de que Deus existe não simplesmente justificada, mas garantida, e, portanto, conhecimento? Tudo isso depende do que a garante. No primeiro volume de sua trilogia sobre a garantia, Plantinga examina e critica todas as principais teorias da garantia que são oferecidas pelos epistemólogos hoje, tais como a deontologia, o fiabilismo, o coerentismo e assim por diante. Fundamentalmente, o método de Plantinga de expor a inadequação de tais teorias é construir experimentos ou cenários de pensamento nos quais todas as condições para a garantia estipuladas por uma teoria são satisfeitas e, mesmo assim, o sujeito em questão não possui o conhecimento da proposição na qual acredita, pois suas faculdades cognitivas não estão funcionando adequadamente na formação da crença. A falha comum sugere que a garantia racional envolve inerentemente a noção de adequado funcionamento das faculdades cognitivas do sujeito. O que levanta uma questão problemática; qual o significado da expressão “funcionar adequadamente” em relação às faculdades cognitivas de uma pessoa? É nesse momento que Plantinga lança uma bomba nas principais linhas epistemológicas ao propor uma explicação peculiarmente teísta da garantia racional e do funcionamento adequado, a saber, que as faculdades cognitivas de alguém estão funcionando adequadamente somente se estiverem funcionando da maneira como Deus as planejou. Ele resume as condições para a garantia da seguinte maneira:
Essa visão pode ser expressa, num primeiro momento, da seguinte form a: Sconhecepse (1 ) a crença de p é produzida em S por meio das faculdades cognitivas que estão funcionando adequadamente (trabalhando com o elas deveriam trabalhar, sem sofrer de qualquer disfunção); (2) o ambiente cognitivo no qual p é produzido é adequado para aquelas faculdades; (3) o propósito do módulo das faculdades epistêmicas que produzem a crença em questão é produzir crenças verdadeiras (alternativamente, o módulo do projeto que governa a produção de p tem o objetivo de produzir crenças verdadeiras) e (4) a probabilidade objetiva de uma crença ser verdadeira, dado o feto de que ela é produzida debaixo dessas condições, é alta.
Embora ele adicione várias qualificações sutis, a idéia básica da exposição de Plantinga é que uma crença é garantida para uma pessoa no caso de suas faculdades cognitivas, ao formarem a crença, estarem funcionando num ambiente apropriado conforme planejado por Deus para que assim funcionassem. Quanto mais firmemente tal pessoa sustenta a crença em questão, mais garantia a crença tem para ela. Se ela acredita de maneira suficientemente firme, a crença tem suficiente garantia de se tornar conhecimento. Com respeito à crença de que Deus existe, Plantinga sustenta que Deus nos constituiu de tal forma que naturalmente formamos tal crença sob certas circunstâncias. Uma vez que a crença é assim formada por faculdades cognitivas funcionando de modo adequado, dentro de um ambiente apropriado, ela é garantida para nós. Além disso, à medida que nossas faculdades não são destruídas pelos efeitos noéticos do pecado, acreditaremos profunda e firmemente na proposição da existência divina, de modo que possamos dizer, em virtude da grande garantia resultante de nossa crença, que sabemos que Deus existe.

Desse modo, sustenta Plantinga, se o seu modelo é verdadeiro, então a crença teísta é tanto justificada quanto garantida. Portanto, a crença teísta é garantida? Tudo depende de Deus existir ou não. Se ele não existe, então a crença teísta provavelmente não é garantida. Se ele existir, então Plantinga acredita que ela é. Se Deus existe, então ele nos criou à sua imagem, ele nos ama e deseja que o conheçamos e o amemos.
E, se é assim, a coisa natural a se pensar é que ele nos criou de maneira tal que viéssemos a sustentar tais crenças verdadeiras, como a de que existe uma pessoa como Deus. [...] E, se isso é assim, então a coisa natural a se pensar é que os processos cognitivos que realmente produzem crença em Deus têm o objecivo, criado por seu projetista, de produzir tal crença. Mas, então, a crença em questão será produzida por faculdades cognitivas funcionando adequadamente de acordo com um projeto bem-sucedido que objetivava a verdade: ela, portanto, terá garantia.
Em síntese, a questão sobre a garantia da crença em Deus é, em sua base, não epistemológica, mas, em vez disso, metafísica ou teológica. A questão “não pode ser decidida apenas pelo atendimento de considerações epistemológicas; em resumo, não é meramente uma discussão epistemológica, mas uma discussão ontológica ou teológica”.

Mas o que dizer de crenças especificamente cristãs? Como alguém pode ter justificativa e garantia para assegurar o teísmo cristão? Para responder a essa pergunta, Plantinga estende o seu relato para incluir não somente o sensus divinitatis., mas também o constrangimento ou testemunho interno do Espírito Santo.

O relato ampliado postula que a nossa queda no pecado teve consequências cognitivas e afetivas desastrosas. O sensus divinitatis foi prejudicado e deformado, suas deliberações silenciadas. Além disso, as nossas afeições foram distorcidas, assim que resistimos às deliberações do sensus divinitatis que porventura permanecem, tornando-nos centrados em nós mesmos e não em Deus. Deus na sua graça precisou encontrar uma maneira para nos informar do plano de salvação que ele tornou disponível, e ele escolheu fazê-lo por intermédio dos meios tríplices das Escrituras, que apresentam as grandes verdades do evangelho, da obra do Espírito Santo, que repara o dano cognitivo e afetivo do pecado para podermos crer nas grandes verdades do evangelho, e, por fim, da fé, que.é a obra principal do Espírito Santo produzida no coração de quem crê. Na perspectiva de Plantinga, o testemunho interno do Espírito Santo é o análogo próximo de uma faculdade cognitiva no sentido de que ela, também, é um “mecanismo” gerador de fé. Como tais as crenças formadas por esse processo satisfazem as condições de garantia. Por isso, pode-se dizer de uma pessoa que ela conhece as grandes verdades do evangelho por meio do testemunho interno do Espírito Santo.

Visto que conhecemos as grandes verdades do evangelho por meio da obra do Espírito Santo, não temos necessidade de evidência delas. Antes, elas são adequadamente básicas para nós, tanto com respeito à justificativa quanto à garantia. Por isso, Plantinga afirma que “de acordo com o modelo, as verdades centrais do evangelho são autoautenticadoras”; isso significa: “Elas não obtêm a sua evidência ou fundamentação por serem cridas a partir da base evidenciai de outras proposições”.

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A verdade é a luz da alma; esta luz não conhece declínio. Com efeito, ela irradia-se com força sobre a alma, de maneira que esta não pode nem pensar nem dizer que não é, sem que o homem se contradiga a si mesmo; pois se a verdade não é, é verdadeiro que a verdade não é: logo algo é verdadeiro; e se algo é verdadeiro, é verdadeiro que a verdade é; logo, se a verdade não é, a verdade é. 
São Boaventura